Thursday 29 July 2010

Ontem, lá me arrastei dolorosamente até aquele estabelecimento de tortura nas Amoreiras, vulgo ginásio, para mais uma sessão masoquista. Tudo seria horrendo se não fosse a televisão ligada na MTV que está mesmo em frente da passadeira em que inicio o meu ciclo de auto-flagelação. Ontem, enquanto corria e transpirava como um tourinho de médio porte, começa a dar uns desenhos animados que se chamam Drawn Together. Fixem este nome. É um pequeno portal mágico de absoluta felicidade.

A graça destes desenhos animados é uma só: politicamente incorrecto levado ao extremo - há de tudo, humor negro, estereótipos raciais, preconceitos associados com a sexualidade, ao excesso de peso, etc, e a verdade é que é absolutamente hilariante. E desenganem-se se acham que isto já é old news depois dos Simpsons, Southpark de Family Guy e American Dad, pois estas séries (embora ingualmente brilhantes) conseguem ser mais subtis na utilização do políticamente incorrecto. Drawn Together é só sobre isso e cada deixa de cada personagem serve apenas para sublimar isso mesmo. As personagens vivem numa casa tipo Big Brother e não há nada que lhes saia da boca que não seja obsceno. Como eu não sou uma comentadora de televisão genial como o Charlie Brooker (Mr. Brooker, me love you long time), o melhor é verem por vocês mesmos. Não me agradeçam, que não é preciso:

http://fliiby.com/file/117361/r3p8rgilgc.html

Wednesday 28 July 2010

Não aguentava nem mais um dia com o layout antigo do blogue. Juro, fazia-me calor. Por isso gramamos agora com este branco sujo insípido (mas fresquinho como uma brisa).

Monday 19 July 2010

Nos últimos dias, uma série de coisas sem qualquer relação entre elas; abri, pela primeira vez, um livro do Fernando Namora (um do Círculo de Leitores de 1975 que o meu pai deixou ficar para trás quando levou a colecção com ele), iniciei sem grande brio o projecto de investigação para o doutoramento (se é que mo aprovam...), fui a uma praia tão apinhada de gente que o senhor que chegou mais tarde só arranjou lugar para se deitar mesmo à minha frente, sendo que se se esticasse mesmo acabaria por me enfiar o pé pela boca dentro. A maneira ideal de nos recordarmos daquela aversão insuportável que só a proximidade física com um estranho provoca. 


O calor persiste. Os dias fundem-se uns nos outros, derretem-se entropicamente. Agora é dia, logo é de noite, depois é dia e é sempre assim, uma coisa arrítmica. O sábado é igual à terça-feira, e o domingo, se uma pessoa não abre a pestana, passa insuspeito por uma quinta-feira. Instalou-se a desordem e não há maestro que marque o compasso.





Teresa Margolles (MEX) - En el aire/ In the air, 2003
bolhas feitas com água da morgue, usada para lavar corpos antes da autópsia









Friday 2 July 2010

O Calor de Lisboa

É imenso. É tal que, mal cheguei a casa, larguei o vestido como as cobras largam pele inteira. Adoro este calor infernal, por mim era assim todos os dias do ano.

Thursday 1 July 2010

Hotel Rwanda/A Moda do Africanismo/O Fetiche do Exótico

Tenho noção do quanto este título está infinitamente para além do pouco que sei, mas enquanto via o Hotel Rwanda (um filme que já não é novidade nenhuma) surgiram-me algumas questões que gostava de expor aqui. Este é um filme que, em certa medida, é duro de ver. Embora tenhamos a clara percepção de que não passa de uma dramatização, há sempre algo subjacente ao logo do filme que nos sugere que os factos foram mil vezes mais terríveis do que alguma vez seria possível transparecer numa mera representação.

Para quem o terrível genocídio de 1994 passou ao lado (como a mim própria, que tinha na altura 9 anos), a história é mais ou menos esta:

O Ruanda é um país africano, cercado geograficamente pela Tanzania, Burundi, Uganda e pelo Congo. Foi inicialmente colonizado pela Alemanha e, mais tarde, por alturas da primeira guerra mundial, viu a sua soberania ser transferida para a Bélgica. Se os alemães foram pouco interventivos, os belgas envolveram-se mais afincadamente em aspectos como a saúde, educação e agricultura. Socialmente, vincaram severamente as diferenças entre duas supostas tribos, Hutus e Tutsis; digo 'supostas' porque só há milhares de anos atrás se poderiam discernir estes diferentes grupos de gente que, entretanto, se foi misturando num só. Isto significa que quando a soberania belga decidiu emitir documentos de identificação para a população, discernindo quem era Tutsi e quem era Hutu, o fez de uma forma completamente arbitrária: os mais altos, de pele mais clara e de nariz mais estreito eram Tutsis e os mais baixos, de pele mais escura e nariz mais largo eram Hutus.
Ou seja: o branco europeu chega lá, inventa um critério, separa um povo que se mesclou durante milénios, e dá preferência a um deles (os Tutsis, que já tinham sido beneficiados anteriormente pelos alemães), ou seja, segrega-os e antagoniza-os. Dividir para reinar, sem tirar nem pôr.

Com o crescente poder conferido às elites Tutsi, estas começam a desejar a independência da Bélgica, algo que, como aconteceu mais tarde com países como Angola e Moçambique,  chamou a atenção do bloco Comunista, merecendo-lhe o seu apoio. Descontentes com este cenário, os Belgas resolvem então virar a proverbial casaca e começam a favorecer os Hutus, a suposta etnia até então preterida. Isto resulta numa vaga de violência anti-Tutsi - só assim, porque a Bélgica se livra de um conflito independentista  virando o jogo para um conflito étnico e prolongando, assim, o seu domínio colonial.

A história continua, obviamente, mas para onde quero chegar basta ficar por aqui. Interessa-me muito a noção de colonização, ainda que seja um assunto com longas e portentosas barbas. Que raio de mania tem o homem branco ocidental, que chega a África, assenta arraial, e se acha com poder de decretar regras a povos nativos. Como é que isto foi sistematicamente possível?? Quem souber que me diga, por favor. Só me ocorre a possibilidade da força bélica, superior às armas comparativamente mais simples e menos letais dos  nativos, pelo menos até à Russia se interessar e inundar aquilo de kalashnikovs. Mas, como dizia, é incompreensível como é que os europeus se safaram nesta apropriação sistemática de territórios alheios e lá se instalaram, literalmente, de armas e bagagens. As armas são mesmo uma merda; o poder de tirar a vida a outra pessoa parece ser, realmente, supremo. Faz lembrar o Ensaio Sobre a Cegueira, em que, quando um dos grupos de cegos se apodera de uma arma, imediatamente adquire o poder de obter tudo o que considera de valor do outro grupo: sexo, objectos pessoais e dinheiro. Enfim, é perverso demais.

Por falar em perverso, há ainda a questão 'étnica'. Esta porcaria deste critério de classificação de pessoas NUNCA trouxe nada de bom. Quanto muito, trouxe sérias vantagens a esse chico-esperto que se lembrou de classificar - olá, homem branco ocidental, é de ti que falo! O homem branco, o classificador, foi esperto quando teve a ideia de classificar porque criou a noção do Outro. E o que é que isto quer dizer? É mais ou menos simples. Suponhamos que chamamos besta a um tipo, certo? Com isto, fazemos duas coisas: definimos esse gajo como uma besta e, ao mesmo tempo, demarcamo-nos desse conceito, ou seja, ele é uma besta, ao contrário de mim, que não sou, até sou uma tipa à maneira.  O mesmo se passa com o classificador, o homem branco ocidental: encontra pretos, amarelos, vermelhos; entre os pretos, vê uns mais altos, uns mais baixos, uns mais gordos e uns mais magros, e assim, o classificador classifica o que vê, isentando-se a si próprio de classe, pois o seu papel é neutro, é o de classificador. Se acham que o que acabei de dizer é um disparate de todo o tamanho, só tenho uma coisa a dizer sobre isso: chamar preto a alguém é insulto, e chamar branco a um gajo é uma perda de tempo.

O fim da picada, o cúmulo desta porra toda é o homem branco ocidental instrumentalizar essa classificação (como se fôssemos detentores de algum estatuto divino) para submeter povos aos seus interesses. Para segregar gente e criar conflitos entre ela; enfim, entretê-los a matar-se uns aos outros enquanto o colonizador aproveita a distracção causada pelas tensões internas para se instalar sem grande oposição dos nativos. Até que o povo arrebita e a coisa se agrava, como no massacre de 1994 no Ruanda e os belgas zarpam dali à força toda, sacudindo as mãos como quem diz 'o nosso trabalho aqui está feito, está na hora de ir para a nossa civilizada casinha!' Enfim, é demais!!


Hoje em dia, contudo, já não há colonização, certo? Há, já se sabe, o pós-colonialismo, em que já não se trata de açambarcar território geográfico (agora já não fixe dizer que 'Portugal é uma única nação, do Minho a Timor'), mas sim de explorar países africanos no sentido de obter o máximo proveito dos seus recursos naturais, para que as grandes multinacionais possam crescer e aumentar exponencialmente os seus lucros, isto graças a parcerias com as elites africanas, que alinham neste esquema perverso que favorece os interesses estrangeiros em detrimento dos interesses internos. Mas não era disso que eu queria falar a seguir. Creio que é perceptível o tom de auto-acusação neste meu post. Tudo isto a mim me parece vergonhoso. Lembro-me perfeitamente de, no primeiro ciclo, aprender sobre o passado imperialista de Portugal, e do tom carregado de orgulho da professora a mostrar-nos no mapa onde tínhamos chegado. E lembro-me de ter pena de como Portugal se tornara outra vez pequenino no meu tempo, quando antes o país tinha sido tão grande e se espalhava pelo mundo fora. E eu achava que naquela altura, Portugal devia ser mais forte e mais importante do que a Espanha e até do que a França.

Quando eu era pequena, ainda se glorificava esta barbárie que foi a colonização. E passaram-se muitos, demasiados anos até eu ouvir, pela primeira vez, uma voz crítica que falasse do direito de auto-determinação dos povos. - nota: "A autodeterminação dos povos é o princípio que garante a todo povo de um país o direito de se autogovernar, tomar suas escolhas sem intervenção externa, ou seja, o direito à Soberania. de um determinado povo de determinar seu próprio status político. Em outras palavras, seria o direito que o povo de determinado país tem de escolher como será legitimado o direito interno sem influência de qualquer outro país." - E que me mostrasse que, até então, nós, os portugueses (e se calhar outros europeus com passado colonial) nos comportávamos como fedelhos armados ao pingarelho, que comparam a importância do seu país pela extensão do seu território ultramarino como quem mede pilinhas. Por mim, os espanhóis e os franceses e os belgas e os ingleses que levassem a porra da bicicleta.

Acho que são atitudes apologéticas e até algo complexadas como a minha que, possivelmente, justificam, em certa medida, esta moda africanista que se vê por aí. É nestas alturas que gosto de recorrer à cultura de massas (afinal de contas, é de moda que falamos), tipo, assim por alto, a Rihanna, mais especificamente no videoclip da música 'Rude Boy'. É vê-la, natural de Barbados, vestida de padrão de zebra contra uma parede a fazer lembrar os rabiscos primitivistas de Keith Haring, cara coberta por pinturas quase tribais e colares de contas coloridas, toda ela um eco do imaginário exótico em que reflectimos as nossas impressões da cultura africana, em algumas partes já mesclada com nuances mais urbanas:


Ou mesmo, e já que falamos de moda, este exemplo de uma colecção decente da uber-chique Louis Vuitton, cheia de leopardo e contas coloridas:


Ou, ainda, em toda esta colecção recente de Dries van Noten (se nunca ouviu falar, é porque não é fashionista, pbtpbpbtpbt!), cuja mistura aparentemente aleatória de padrões remete para a indumentária colorida e ritmada das mulheres africanas:






É por isso que é inevitável ver isto de uma perspectiva algo cínica; não é, de todo, como olharmos para o legado cubista de Picasso e reconhecermos nele tanta influência africana. Picasso viu na vastidão da cultura africana pano para mangas e, décadas de modernismo depois, andamos nós a fazer mangas de pano que ressoam assim qualquer coisa de exótico, que ainda retratam o tal Outro. Se com Picasso a curiosidade e o encanto eram genuínos, a meu ver, hoje trazemos à cultura de massas estes elementos mas fazêmo-lo complexadamente, conscientes da vergonha que foi um dia termo-nos instalado acima dessa cultura local e tentado substituí-la pela nossa. Agora, parece-me, tentamos o oposto: tentamos, quanto mais não seja durante a estação Primavera-Verão, trazer um pouco da cultura do Outro para junto da nossa.

Para terminar, deixo-vos com algumas obras de um dos artistas mais espectaculares que alguma vez me passou pelos olhos e por estes meus modestos neurónios. Chama-se Yinka Shonibare (Inglês/Nigeriano) e aqui ficam algumas imagens do seu trabalho, que, a meu ver, expõe de forma infinitamente mais eficaz e eloquente todos estes assuntos que abordei tão incompetentemente neste post: