Saturday 8 May 2010

I LOVE YOU, PHILLIP MORRIS

Quem sabia deste tal Phillip Morris? Um homem que,durante alguns anos da sua vida, tentou encaixar-se no modelo clássico do marido/pai de família/polícia cumpridor e que - assim, de repente - descobre que afinal é homossexual. E gosta. E em consequência de um grave acidente de viação, tem a derradeira epifania e resolve aceitar-se como tal, encontrando mesmo um parceiro bronzeado e deslumbrante (que no filme é Rodrigo Santoro, que conhecemos como galã das novelas; ou então como a Lady Di, em Carandiru).

A parte problemática começa aqui. Há dois aspectos no filme, que disputam a nossa atenção até ao fim; e digo-vos, nem sempre vence a melhor. Esses dois aspectos, que no filme funcionam em paralelo (e que, a meu ver, deviam estar entrosados) são a) a representação da homossexualidade e b) o carácter do protagonista Steven Russell, que no filme é Jim Carrey.

A questão do conflito entre estes dois aspectos não é óbvia. Foi preciso uma breve cena de sexo entre dois homens (Steve e um anónimo) e mais alguns beijos homossexuais para um número considerável de pessoas abandonar a sala. Eu, convicta progressista, ri-me deles e pensei 'pff, conservadores! Se fosse o Leonardo DiCaprio e a Kate  Winslet deixavam-se ficar. Que púdicos, que reaccionários!' E ao comentar isto mesmo com o namorado, geralmente menos progressista do que eu, ele sai-se com esta: talvez estejam a sair por causa de o filme ser uma merda.
E foi assim que me dei conta dos tais dois aspectos que referi há bocado. Ou seja, eu achei que todo o filme era uma representação da homossexualidade e esqueci-me completamente do enredo. Foi também assim que percebi que a estratégia do realizador (cujo nome não fixei) não foi a melhor ao enfatizar tanto a sexualidade do personagem principal, e ao confrontar tantas e repetidas vezes o espectador com os beijos, o sexo, as manifestações de afecto entre dois homens, o realizador torna a história meramente periférica. O que não deixa de ser curioso por duas razões: a primeira, porque a homossexualidade ainda possui um considerável shock value e, em segundo lugar, implica que há algo de profundamente subversivo neste filme, pois faz-nos questionar o modelo James Bond, com os seus truques e charmes e enrolanços com as mulheres mais bonitas do planeta. Só que neste caso o Steven Russel bate os James Bonds e os McGuyvers aos pontos e enfia-os num bolsinho: a história é verídica.
Como li há dias, 'mais depressa a vida real se parece com a ficção do que a ficção se parece com a vida real'. Damn right.

A história é, afinal, a parte mais fascinante e (infelizmente para todos) só nos apercebemos realmente disso no fim, quando ficamos a saber que, por fazer de todos parvos (o governador do estado do Texas por ter desempenhado funções de advogado sem qualificações, o presidente da imensa multinacional onde conseguiu chegar a CFO, entre inúmeros esquemas inteligentíssimos que pôs em prática para obter os carros, os casarões e o olhar embevecido do parceiro) o expedito impostor Steven Russell levou com uma pena perpétua.

Foi, por isso, com alguma pena, que vi o filme a tomar contornos de comédia, a encorporar mesmo alguns clichés homossexuais. Parece-me, a mim, que não percebo nada, que é um caminho fácil de tomar para chegar ao coração do espectador. Contudo, meia volta, o vigarista par excellence lá fazia mais uma das suas brilhantes artimanhas para se desenvencilhar dos problemas causados pela asneira anterior, e lá a história ganhava terreno.


Posto isto, concluí que não é um excelente filme. Apesar de tudo, não consegui deixar de sentir alguma satisfação ao ver representado um estilo de vida diferente do que aqui consideramos normal. Sempre achei que a sensação de estranheza é algo contra o qual devemos lutar sempre; se, em crianças, é uma defesa, na vida adulta é algo que nos torna cegos, surdos e mudos em relação ao mundo. É preciso confrontarmo-nos com coisas novas, para um dia deixarmos de lhes resistir e assim podermos co-existir sem problemas - como uma espécie de sistema imunitário. Não digo com isto que devemos necessariamente mudar alguma coisa em nós para sermos nós também alternativos; digo apenas que devemos reconhecer outras coisas e reconhecer a essas mesmas coisas um direito igual a existirem, desde que não prejudiquem ninguém.

O Jim Carrey prejudica alguém por estar aos beijos com o Ewan McGregor? Também acho que não. Contudo, aqueles espectadores que sairam da sala desciam aqueles degraus vincando pura convicção. Tipo, 'NEM MAIS UM MINUTO DESTA MERDA.' E, lá está, assumi eu, que o faziam por repulsa por (aquela) representação da homossexualidade (sublinho a palavra 'aquela', porque a homossexualidade, como qualquer outro aspecto da vida, tem infinitas possibilidades de representação e aquela não era mais do que uma perpectiva sobre o assunto). Mas, depois, no carro, enquanto falávamos sobre este tal conflito, concluímos que só podiam ter saído por causa dos beijos e dos amassos; se fosse porque o filme não prestava, pensariam nos 6 euros que pagaram e deixavam-se ficar.

Wednesday 5 May 2010

No entanto, ela move-se - Parte 1


Desde 2007, este blogue tem estado à deriva por esse cosmos cibernético, à espera que, num momento inspirado ou de procrastinação, eu me dignasse a deitar para aqui umas linhas. Não o fiz porque não tinha nada para dizer.

Não que tenha progredido muito desde aí - ainda não tenho uma mensagem urgente, mas agora começo a pensar que 'vai do começar'. Decidi começar por explicar o título do blog, que creio ser uma expressão brilhante, no seu contexto. Ouvi a história pela primeira vez há muitos anos, contada pelo meu pai, admirador das ideias e do progresso científico: Galileu Galilei, pai do heliocentrismo, foi levado a julgamento pelo Santo Ofício em consequência da absoluta heresia dessa mesma teoria científica. Quando já se tinha estabelecido e validado que a Terra tinha uma localização fixa (diz a Wikipedia que foi graças a Ptolomeu), a descoberta caiu mal ao Papa da altura, que decidiu manter Galileu em prisão domiciliária até ao fim da sua vida. A melhor parte da história é, infelizmente, uma lenda, mas de todo modo é genial - diz-se que, no julgamento, depois de ter desmentido o heliocentrismo, Galileu declarou discretamente 'No entanto, ela move-se!'

Bem ou mal contada, esta história sempre me fascinou por duas razões: porque expõe as implicações de ter razão antes do tempo e porque a convicção do Galileu mantém-se inalterada pela obrigação de ter que agir e que se manifestar em conformidade com o resto das pessoas.

Há um artista plástico português cuja obra admiro muito, chamado João Pedro Vale. Aqui vai um excerto da minha tese de mestrado, em que falo sobre a sua obra 'However, It Moves', traduzido do original Inglês, em cima do joelho:


'Hoje em dia, a colonização é uma mera recordação remota que gera pouco ou nenhum debate em Portugal. No passado, Salazar insistia em manter o seu domínio sobre as colónias ultramarinas - isto, no século XX, enquanto outros colonizadores Europeus moviam esforços de forma a remover a sua presença do continente Africano. Persistem ainda vários monumentos ao longo de algumas cidades costeiras portuguesas, celebrando (ainda?) as descobertas e os seus protagonistas.

Visualmente dominantes e em estilo militar, esses monumentos parecem reavivados em 'However It Moves!, 2007 . Como uma figura híbrida e mitológica, esta escultura de sal parece descender do cruzamento entre um bolo de noiva e uma fortaleza militar. - em suma, uma verdadeira antítese, celebração e conflito num só objecto. Muito frequentemente, no trabalho de JPV, o espectador é bombardeado por uma percepção ambígua da escultura, algo que só consigo comparar com aquelas imagens planas, a preto e branco, em que a àrea em branco descreve um objecto e a àrea a preto descreve um objecto diferente, sendo impossível ver ambos em simultâneo.

Se escolhermos ignorar a superfície decorada e imaculadamente branca, somos confrontados com um objecto impenetrável e hermético, com canhões ameaçadoramente apontados a nós; por outro lado, se optarmos por observar a superfície adocicada deste objecto de dois andares, imediatamente nos salta à mente o típico bolo de noiva, coberto de açúcar em montinhos decorativos e numa configuração de dois andares, para chegar para toda a gente.

Uma das possibilidades de leitura desta obra pode, creio eu, referir-se às estratégias de expansão das velhas monarquias Europeias, em que os países eram conquistados e as suas fronteiras (re)definidas de duas formas: ou pela guerra ou pelo casamento dos soberanos.
Para além disso, pode dizer-se que, olhando para trás, o passado português no ultramar resume-se agora nestes monumentos celebratórios despropositados e meramente decorativos. O curioso título desta obra ecoa ainda a lenda que narra o episódio em que o astrónomo italiano Galileu Galilei é obrigado a abandonar e a negar a sua teoria do heliocentrismo. Ameaçado pela pena de morte (e sabe-se que os métodos da Inquisição não eram meigos), Galileu despacha-se a negar o seu modelo científico, sem deixar, contudo esta nota: 'no entanto, ela move-se'. Esta afirmação pode, assim, funcionar como uma subtil afirmação da uma percepção alternativa à versão oficial das coisas, um ícone de perseverança em relação a algo que desafia o que está geralmente estabelecido, uma declaração sobre a imparável mobilidade das coisas.'

Acho esta ideia muitíssimo interessante. Quanto do que achamos que sabemos não passa de uma versão? A História, por exemplo, é a maior versão de todas, é a voz dos que a contaram, e os que a contaram são um grupo muito restrito composto por, geralmente, homens, brancos, heterossexuais, Cristãos e ocidentais. Num mundo tão grande e tão vasto, porque é que damos ouvidos só a este grupo? Porque lhes é permitido 'universalizar' as suas perspectivas? O que é feito da voz da maioria?

Será que a maioria não é uma questão numérica? Será ela, na verdade, uma questão de influência, uma questão de elite, logo, uma questão de poder? Não sei, mas acho importante pensar nisto.


Fica, por enquanto, por aqui a primeira 'esculpidela' neste blog ainda amorfo. Acabo só com uma última observação sobre o nome Galileu Galilei, para mim o melhor nome de todos; tenciono, um dia, quem sabe, ter um filho a quem possa chamar Rodrigo para que, tal como o mítico astro-físico, possa apresentar-se com uma sonante aliteração, isto é, Rodrigo Rodrigues.
Quem sabe se por alturas da próxima geração seja menos perigoso ter-se razão antes do tempo, não vá o meu futuro rebento vir a ser algum prodígio.