Para quem o terrível genocídio de 1994 passou ao lado (como a mim própria, que tinha na altura 9 anos), a história é mais ou menos esta:
O Ruanda é um país africano, cercado geograficamente pela Tanzania, Burundi, Uganda e pelo Congo. Foi inicialmente colonizado pela Alemanha e, mais tarde, por alturas da primeira guerra mundial, viu a sua soberania ser transferida para a Bélgica. Se os alemães foram pouco interventivos, os belgas envolveram-se mais afincadamente em aspectos como a saúde, educação e agricultura. Socialmente, vincaram severamente as diferenças entre duas supostas tribos, Hutus e Tutsis; digo 'supostas' porque só há milhares de anos atrás se poderiam discernir estes diferentes grupos de gente que, entretanto, se foi misturando num só. Isto significa que quando a soberania belga decidiu emitir documentos de identificação para a população, discernindo quem era Tutsi e quem era Hutu, o fez de uma forma completamente arbitrária: os mais altos, de pele mais clara e de nariz mais estreito eram Tutsis e os mais baixos, de pele mais escura e nariz mais largo eram Hutus.
Ou seja: o branco europeu chega lá, inventa um critério, separa um povo que se mesclou durante milénios, e dá preferência a um deles (os Tutsis, que já tinham sido beneficiados anteriormente pelos alemães), ou seja, segrega-os e antagoniza-os. Dividir para reinar, sem tirar nem pôr.
Com o crescente poder conferido às elites Tutsi, estas começam a desejar a independência da Bélgica, algo que, como aconteceu mais tarde com países como Angola e Moçambique, chamou a atenção do bloco Comunista, merecendo-lhe o seu apoio. Descontentes com este cenário, os Belgas resolvem então virar a proverbial casaca e começam a favorecer os Hutus, a suposta etnia até então preterida. Isto resulta numa vaga de violência anti-Tutsi - só assim, porque a Bélgica se livra de um conflito independentista virando o jogo para um conflito étnico e prolongando, assim, o seu domínio colonial.
A história continua, obviamente, mas para onde quero chegar basta ficar por aqui. Interessa-me muito a noção de colonização, ainda que seja um assunto com longas e portentosas barbas. Que raio de mania tem o homem branco ocidental, que chega a África, assenta arraial, e se acha com poder de decretar regras a povos nativos. Como é que isto foi sistematicamente possível?? Quem souber que me diga, por favor. Só me ocorre a possibilidade da força bélica, superior às armas comparativamente mais simples e menos letais dos nativos, pelo menos até à Russia se interessar e inundar aquilo de kalashnikovs. Mas, como dizia, é incompreensível como é que os europeus se safaram nesta apropriação sistemática de territórios alheios e lá se instalaram, literalmente, de armas e bagagens. As armas são mesmo uma merda; o poder de tirar a vida a outra pessoa parece ser, realmente, supremo. Faz lembrar o Ensaio Sobre a Cegueira, em que, quando um dos grupos de cegos se apodera de uma arma, imediatamente adquire o poder de obter tudo o que considera de valor do outro grupo: sexo, objectos pessoais e dinheiro. Enfim, é perverso demais.
Por falar em perverso, há ainda a questão 'étnica'. Esta porcaria deste critério de classificação de pessoas NUNCA trouxe nada de bom. Quanto muito, trouxe sérias vantagens a esse chico-esperto que se lembrou de classificar - olá, homem branco ocidental, é de ti que falo! O homem branco, o classificador, foi esperto quando teve a ideia de classificar porque criou a noção do Outro. E o que é que isto quer dizer? É mais ou menos simples. Suponhamos que chamamos besta a um tipo, certo? Com isto, fazemos duas coisas: definimos esse gajo como uma besta e, ao mesmo tempo, demarcamo-nos desse conceito, ou seja, ele é uma besta, ao contrário de mim, que não sou, até sou uma tipa à maneira. O mesmo se passa com o classificador, o homem branco ocidental: encontra pretos, amarelos, vermelhos; entre os pretos, vê uns mais altos, uns mais baixos, uns mais gordos e uns mais magros, e assim, o classificador classifica o que vê, isentando-se a si próprio de classe, pois o seu papel é neutro, é o de classificador. Se acham que o que acabei de dizer é um disparate de todo o tamanho, só tenho uma coisa a dizer sobre isso: chamar preto a alguém é insulto, e chamar branco a um gajo é uma perda de tempo.
O fim da picada, o cúmulo desta porra toda é o homem branco ocidental instrumentalizar essa classificação (como se fôssemos detentores de algum estatuto divino) para submeter povos aos seus interesses. Para segregar gente e criar conflitos entre ela; enfim, entretê-los a matar-se uns aos outros enquanto o colonizador aproveita a distracção causada pelas tensões internas para se instalar sem grande oposição dos nativos. Até que o povo arrebita e a coisa se agrava, como no massacre de 1994 no Ruanda e os belgas zarpam dali à força toda, sacudindo as mãos como quem diz 'o nosso trabalho aqui está feito, está na hora de ir para a nossa civilizada casinha!' Enfim, é demais!!
Hoje em dia, contudo, já não há colonização, certo? Há, já se sabe, o pós-colonialismo, em que já não se trata de açambarcar território geográfico (agora já não fixe dizer que 'Portugal é uma única nação, do Minho a Timor'), mas sim de explorar países africanos no sentido de obter o máximo proveito dos seus recursos naturais, para que as grandes multinacionais possam crescer e aumentar exponencialmente os seus lucros, isto graças a parcerias com as elites africanas, que alinham neste esquema perverso que favorece os interesses estrangeiros em detrimento dos interesses internos. Mas não era disso que eu queria falar a seguir. Creio que é perceptível o tom de auto-acusação neste meu post. Tudo isto a mim me parece vergonhoso. Lembro-me perfeitamente de, no primeiro ciclo, aprender sobre o passado imperialista de Portugal, e do tom carregado de orgulho da professora a mostrar-nos no mapa onde tínhamos chegado. E lembro-me de ter pena de como Portugal se tornara outra vez pequenino no meu tempo, quando antes o país tinha sido tão grande e se espalhava pelo mundo fora. E eu achava que naquela altura, Portugal devia ser mais forte e mais importante do que a Espanha e até do que a França.
Quando eu era pequena, ainda se glorificava esta barbárie que foi a colonização. E passaram-se muitos, demasiados anos até eu ouvir, pela primeira vez, uma voz crítica que falasse do direito de auto-determinação dos povos. - nota: "A autodeterminação dos povos é o princípio que garante a todo povo de um país o direito de se autogovernar, tomar suas escolhas sem intervenção externa, ou seja, o direito à Soberania. de um determinado povo de determinar seu próprio status político. Em outras palavras, seria o direito que o povo de determinado país tem de escolher como será legitimado o direito interno sem influência de qualquer outro país." - E que me mostrasse que, até então, nós, os portugueses (e se calhar outros europeus com passado colonial) nos comportávamos como fedelhos armados ao pingarelho, que comparam a importância do seu país pela extensão do seu território ultramarino como quem mede pilinhas. Por mim, os espanhóis e os franceses e os belgas e os ingleses que levassem a porra da bicicleta.
Acho que são atitudes apologéticas e até algo complexadas como a minha que, possivelmente, justificam, em certa medida, esta moda africanista que se vê por aí. É nestas alturas que gosto de recorrer à cultura de massas (afinal de contas, é de moda que falamos), tipo, assim por alto, a Rihanna, mais especificamente no videoclip da música 'Rude Boy'. É vê-la, natural de Barbados, vestida de padrão de zebra contra uma parede a fazer lembrar os rabiscos primitivistas de Keith Haring, cara coberta por pinturas quase tribais e colares de contas coloridas, toda ela um eco do imaginário exótico em que reflectimos as nossas impressões da cultura africana, em algumas partes já mesclada com nuances mais urbanas:
Ou mesmo, e já que falamos de moda, este exemplo de uma colecção decente da uber-chique Louis Vuitton, cheia de leopardo e contas coloridas:
Ou, ainda, em toda esta colecção recente de Dries van Noten (se nunca ouviu falar, é porque não é fashionista, pbtpbpbtpbt!), cuja mistura aparentemente aleatória de padrões remete para a indumentária colorida e ritmada das mulheres africanas:
É por isso que é inevitável ver isto de uma perspectiva algo cínica; não é, de todo, como olharmos para o legado cubista de Picasso e reconhecermos nele tanta influência africana. Picasso viu na vastidão da cultura africana pano para mangas e, décadas de modernismo depois, andamos nós a fazer mangas de pano que ressoam assim qualquer coisa de exótico, que ainda retratam o tal Outro. Se com Picasso a curiosidade e o encanto eram genuínos, a meu ver, hoje trazemos à cultura de massas estes elementos mas fazêmo-lo complexadamente, conscientes da vergonha que foi um dia termo-nos instalado acima dessa cultura local e tentado substituí-la pela nossa. Agora, parece-me, tentamos o oposto: tentamos, quanto mais não seja durante a estação Primavera-Verão, trazer um pouco da cultura do Outro para junto da nossa.
Para terminar, deixo-vos com algumas obras de um dos artistas mais espectaculares que alguma vez me passou pelos olhos e por estes meus modestos neurónios. Chama-se Yinka Shonibare (Inglês/Nigeriano) e aqui ficam algumas imagens do seu trabalho, que, a meu ver, expõe de forma infinitamente mais eficaz e eloquente todos estes assuntos que abordei tão incompetentemente neste post:
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